O deputado estadual do Rio de Janeiro
Marcelo Freixo (P-Sol) ganhou projeção nacional em 2009 ao presidir a CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do seu estado. A investigação resultou no indiciamento de 220 pessoas e na prisão de 500 envolvidos com grupos de agentes de segurança que mantêm o controle das favelas cariocas. A repercussão foi parar até nas telas de cinema, pois um dos personagens do filme Tropa de Elite 2 foi inspirado na atuação de
Freixo. O deputado esteve em Porto Alegre no dia 20 deste mês para receber uma homenagem da Câmara Municipal.
A entrevista é de
Samir Oliveira e publicada pelo
Jornal do Comércio, 30-05-2011.
Freixo avalia que a transição democrática no País não está completa. “Vivemos 21 anos de ditadura militar. Tivemos avanços nos direitos políticos, mas o mesmo não ocorreu nos direitos econômicos e sociais”, aponta.
Ele considera que as
Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) não devem ser banalizadas nem sistematicamente evitadas pelos governos. E comenta o caso de Porto Alegre, onde a oposição tenta realizar uma CPI para investigar denúncias de irregularidades na Secretaria de Saúde e o assassinato do ex-titular da pasta
Eliseu Santos (PTB). “Se temos um secretário de governo assassinado e, por trás disso, um esquema mafioso, cabe uma CPI, é lógico.”
Natural de Niterói (RJ),
Marcelo Ribeiro Freixo tem 44 anos e é deputado estadual do Rio de Janeiro pelo
Partido Socialismo e Liberdade (P-Sol). Formado em História, atuou na
ONG Justiça Global e foi diretor do Sindicato dos Professores de São Gonçalo e Niterói, de 1993 a 1995. Além disso, coordenou projetos educativos e de prevenção à Aids em penitenciárias cariocas, em 1995 e 1996. Filou-se ao PT em 1986, partido no qual se manteve até 2005, quando, no mês de setembro, filiou-se ao P-Sol. Elegeu-se deputado estadual em 2006 com 13.547 votos. E reelegeu-se em 2010 com mais de 177 mil votos. Durante o mandato, presidiu a
CPI das Milícias, que resultou no indiciamento de 220 pessoas e na prisão de mais de 500 envolvidos com os grupos de agentes públicos da segurança que detinham o poder nas favelas. Atualmente, preside a
CPI do Tráfico de Armas e deve se candidatar à prefeitura do Rio de Janeiro em 2012.
Eis a entrevista.
Em que estágio está a luta pelos direitos humanos no País?
Tivemos avanços, mas são pequenos diante dos desafios. A luta pelos direitos humanos passa por um processo pedagógico, que é esclarecer o que eles significam. É a grande agenda da democracia, senão ficamos num debate que reduz a questão aos guetos, como se os direitos humanos tivessem que ser tratados por capítulos: homossexualidade, tortura etc. Esse movimento é muito ruim e precisa ser superado. O debate não pode ser fragmentado.
E como deve ser a abordagem?
Todas as grandes cidades brasileiras hoje têm como principal discussão o tema da segurança. É fundamental que o entendimento de direitos humanos entre nesse debate com protagonismo, não como subcapítulo. Sociedade segura é aquela que garante um conjunto maior de direitos. Não é aquela que aumenta muros e o número de policiais e de prisioneiros. Sociedades assim convivem com o medo, a violência e com a lógica da segregação.
Convencionou-se dissociar direitos humanos de segurança pública.
Eles não são incompatíveis. Essa relação que fazem entre policiais de um lado e defensores dos direitos humanos de outro tem que acabar. É um retrocesso. A luta pelos direitos humanos é pelo cumprimento da lei. Não é algo para além da lei. É permitido torturar? É permitido matar? É permitido ter preconceito? Não. As leis precisam ser respeitadas. O conjunto de direitos das pessoas não pode ser determinado pelo tamanho das suas contas-correntes. Isso precisa ser discutido nas cidades, porque é nelas que as pessoas vivem e militam. A agenda dos direitos humanos tem que se aproximar da agenda de uma cidade que precisa ser mais justa.
O Estado está preparado para a discussão dos direitos humanos e a democracia?
Temos o histórico de um Estado com relações autoritárias com a sociedade. Vivemos 21 anos de ditadura militar (1964-1985). E a transição para a democracia não está completa. Tivemos avanços nos direitos políticos, mas o mesmo não ocorreu nos direitos econômicos e sociais. A estrutura da polícia é muito vinculada a uma herança da ditadura. Os batalhões de polícia parecem quartéis. O
Batalhão de Operações Especiais (Bope), no Rio de Janeiro, realiza seus treinamentos em uma favela-cenário. Mas os crimes não se concentram nas favelas. Menos de 1% dos moradores de qualquer favela do Rio tem envolvimento com o crime. Por que toda a lógica de repressão é voltada para a favela? Na verdade, não se combate o crime, se combate a favela.
Na sua avaliação, por que isso ocorre?
É um processo em que o próprio Estado opera a criminalização da pobreza para incentivar uma ordem que interessa a um determinado grupo político. O Estado não está ausente nas favelas. Esse discurso, que parte da mídia comprou, não é verdadeiro. O Estado é presente, mas só onde quer e ao que se propõe. No Rio, o Estado entra em qualquer favela a hora que quiser. O
complexo do Alemão foi tomado pelas forças de segurança há cinco meses. A eleição (para governador) foi anterior a isso. No momento da eleição, a região estava nas mãos do varejo das drogas. O (governador
Sérgio) Cabral (PMDB) teve 76% dos votos válidos no complexo do Alemão. O irmão do
Marcinho VP, dono do complexo do Alemão, tentou se eleger deputado estadual. Que tipo de Estado paralelo elege um governador? Não estou dizendo que
Cabral tenha associação com tráfico. Só estou dizendo que o Estado controla aquele local, que pode lhe dar voto. Todos da base do governo se elegeram na região.
Manter a situação do jeito que está é vantajoso para o Estado?
Claro. Não ter políticas públicas é a política pública. O Estado é um instrumento de perpetuação do poder de alguns setores e isso começa pela disputa nas localidades. A relação entre Estado, soberania e território é o debate que toda grande cidade está fazendo. O Estado leiloa o seu poder para muitos setores. Nas áreas de milícias (grupos de agentes de segurança que atuam extraoficialmente nas favelas), eles comandam o dia a dia das pessoas. Os moleques não podem pintar o cabelo de loiro. Se pintarem, são expulsos de sua região, porque milicianos consideram que isso é coisa de traficante. São agentes públicos da área da segurança que indicam o diretor da escola, o diretor do hospital, o comandante do batalhão... Então não é um Estado paralelo, é um Estado leiloado, que representa o interesse de um grupo criminoso privado composto por agentes públicos.
A relação entre política e manutenção do medo nas favelas interessa aos governantes?
As milícias elegem prefeito, governador, deputados, senadores. Reproduzem uma elite corrupta no poder. São úteis para outros segmentos que não são milicianos, mas que se alimentam dessa relação. As áreas controladas pelo varejo da droga são diferentes. Também têm o seu cotidiano marcado. Por exemplo, uma menina foi morta recentemente na
Rocinha porque namorava um policial militar. Ter o controle sobre o dia a dia das pessoas não significa substituir o Estado. As favelas não são territórios estranhos ao Estado, ele se reproduz nelas.
Como o senhor avalia a política do governo federal que preconiza a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) nas regiões de conflito?
Cabral foi reeleito com a bandeira das
UPPs. Os meios de comunicação têm visto nisso uma saída para a consolidação de uma cidade olímpica. As
UPPs são um projeto de cidade, não de segurança pública.
Por quê?
O Rio está recebendo muitos investimentos privados em função dos Jogos Olímpicos e da Copa do Mundo de 2014. Temos 16 UPPs instaladas num universo de mil favelas. Nenhuma área controlada por milícia tem UPP, com exceção de
Ubatan - onde os jornalistas do jornal
O Dia foram barbaramente torturados. Portanto, essa região tem um potencial simbólico. As UPPs estão em áreas estratégicas de grandes investimentos do capital privado. Todas as favelas próximas a hotéis e a praias da zona Sul têm uma UPP. Não é um projeto de policiamento e não atende às favelas mais violentas. É um projeto de cidade.
O governo privilegia zonas que serão turísticas?
As decisões políticas do Estado vão sempre priorizar alguém. Quem diz que governa para todo mundo mente para alguém. Ou governa para o agronegócio, ou faz a reforma agrária. Ou governa para quem comanda as empresas de ônibus, ou governa para a população que usa ônibus. Na segurança é a mesma coisa. A polícia não é corrupta porque está na sua natureza, mas sim porque serve a uma elite corrupta. A polícia faz o papel sujo da política. Uma polícia barata e corrupta interessa a quem se reproduz nessas relações. Como diz a música do
Chico Buarque: “Quem tem gravata e capital nunca se dá mal”.
E como o senhor avalia a ação promovida pelo Bope nas favelas do Rio?
Uma vez, em uma palestra na Espanha, exibi um vídeo feito pela
Regina Casé que mostra o “caveirão” entrando numa favela. É um carro preto blindado com o desenho de uma caveira com uma faca enterrada (símbolo do
Bope). O vídeo mostra o carro disparando tiros para todos os lados e um auto-falante anunciando: “Sai da frente que eu vim para buscar sua alma”. Tinha senhores de idade e crianças correndo. Depois da exibição, expliquei que aquela era uma cena que acontecia todos os dias nas favelas do Rio. Eis que uma menina da plateia disse: “Estou muito impressionada. Por que a polícia não prende esses caras?” O “caveirão” é feito para matar pobres. O
Bope é uma tropa de homens de preto matando homens pretos. É um batalhão de operações cotidianas na favela. O problema não se reduz ao
Bope, é toda a lógica de segurança.
O senhor protagonizou a CPI das Milícias e agora conduz a CPI do Tráfico de Armas. Como avalia a importância das CPIs?
A
CPI é um instrumento muito poderoso e não deveria ser banalizada. Mas, ao mesmo tempo, não pode ser anulada sistematicamente. Por exemplo, no caso de
Porto Alegre: se temos um secretário de governo assassinado (
Eliseu Santos, PTB) e, por trás disso, um esquema mafioso, cabe uma CPI, é lógico. Se não cabe uma CPI nisso, vai caber no quê? Não cabe a um governo ficar desqualificando CPI com uma argumentação de que “é eleitoral”. Quando fiz a
CPI das Milícias, era um ano de eleição municipal. Eu não estava concorrendo e me acusavam de ter motivações eleitorais.
Em que situações é válida uma CPI?
CPI tem que ser utilizada num momento em que só ela pode resolver o problema. Para enfrentar as milícias, ou era uma CPI, ou não era nada. Como eu iria enfrentar deputados eleitos pelas milícias dentro da Assembleia se não fosse com CPI? Como iria enfrentar a máfia? Com uma associação de moradores? Ia fazer uma passeata contra as milícias? A CPI era um instrumento que me daria chance de quebrar o sigilo bancário dos milicianos. Era um instrumento com poder jurídico. Pude interrogar os mafiosos, eles eram obrigados a comparecer. Não gosto quando uma CPI é usada para marcar uma posição contra ou a favor de um governo. Isso a desqualifica.
Qual foi o resultado da CPI das Milícias?
Mudou a opinião pública. A imprensa tratava a milícia como um mal menor, algo que ajudava a enfrentar o tráfico. Governantes faziam isso. O ex e o atual prefeito do Rio (
César Maia, do DEM, e
Eduardo Paes, do PMDB, respectivamente) foram coniventes com a milícia e de alguma maneira alimentaram essa opinião. O ex-prefeito chamou a milícia de “autodefesa comunitária.” E
Eduardo Paes deu como exemplo de policiamento uma área que era controlada por milícias. O poder público mudou depois da CPI. Foram 220 indiciados, mas houve um pedido de investigação de mais 950 pessoas. E o número de presos foi superior a 500. Na época, em 2009, entreguei ao então ministro da Justiça
Tarso Genro (PT) o relatório da CPI das Milícias, com 58 propostas para resolver o problema.
Desde então, o senhor anda com uma escolta de seguranças.
Mexemos com a máfia no Rio de Janeiro e isso gera reações em qualquer lugar do mundo. A
CPI das Milícias alterou completamente a minha vida. Não sou inconsequente, fiz o que deveria ser feito, era minha obrigação. Nunca recebi uma ameaça direta, nunca me ligaram ou mandaram bilhetes. Mas a Polícia Civil descobriu três planos concretos para me matar. Óbvio que não posso esperar eles fazerem alguma coisa. Tenho seguranças na porta da minha casa 24 horas por dia e tenho uma escolta que anda comigo num carro blindado onde quer que eu vá.
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"Não ter políticas públicas é a política pública". Entrevista com Marcelo Freixo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU